quinta-feira, 29 de março de 2012

VIVA










Hoje será cremado o corpo de Millôr Fernandes, morto na terça (27/03). O que nos consola é que vai ser muito difícil apagar o nome de Millôr da história desse país. Millôr, autodidata, foi ímpar em tudo que fez, jornalista, escritor de teatro, humorista, chargista, frasista, ilustrador, artista plástico, tradutor, poeta e o escambau a quatro... nosso Blog faz uma pequena homenagem ao Grande Millôr, nosso Vão Gôgo, nosso Guru do Méier.



MILLÔR POR ELE MESMO
 

1924
Nascido Milton Fernandes, no Meyer, em 16 de agosto. Ou em 27 de maio? Ou em 27 de maio do ano anterior? Há desencontros de opinião na família. Na carteira de identidade: 27-05-1924. Meu amigo, Frederico Chateaubriand, sempre repetia, quando se falava que alguém estava “muito moço”, isto é, aparentava menos que a idade que tinha: “Idade é a da carteira”. Isto é, não adianta ter qualquer esperança contra a cronologia. No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor.
1925
Morto meu pai. Nessa idade a orfandade passa impressentida. Mas a família – mãe com quatro filhos – cai de nível imediatamente.
1931
Entrada para a Escola Enes de Sousa, no mesmo Meyer, educandário dirigido por Isabel Mendes, mestra extraordinária que mais tarde receberia a homenagem de ter o colégio batizado com o seu nome. Enes de Sousa, só fui saber quem era muitos anos mais tarde, nas memórias de Pedro Navas. Um abolicionista, se é que isso existe.
1934
Morta minha mãe. Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença.
1934 a 1937
O período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver.
1938
15 de março: início da profissão de jornalista.
1938 a 1942
Liceu de Artes e Ofícios, onde um dia um professor deteve a massa dos alunos que desciam as enormes escadarias e, no meio de todo mundo, advertiu-me para que eu nunca mais zombasse de um colega. “As pessoas podem perdoar que você bata a sua carteira mas jamais perdoarão isso.” Aprendi.
1941
Descubro, aos 17 anos, que não me chamo Milton, mas Millôr. Acho bom, não mudo, e o nome logo ’pega’.
1943
Começam os anos gloriosos da revista ’O Cruzeiro’, que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000.
1944
Com tio Viola, chefe da gráfica ’O Cruzeiro’, responsável por minha entrada no jornalismo. Viola, nome da família pelo lado italiano, teve recentemente uma possibilidade de glória. Eu vi o Papa João Paulo I dizer na televisão: “Todos os Violas do Brasil são meus primos.” Mas morreu logo depois.
1946
A vida era bela e não sabíamos. Ou sabíamos? Aqui, Péricles Maranhão, autor da figura mais popular no humor brasileiro de todos os tempos: ’O Amigo da Onça’. Canhestramente faço o ’amigo’ da foto.
1948
Na foto com Walt Disney, no estúdio dele, em Hollywood. Foto cuidadosamente posada. Nessa época eu ainda acreditava que Disney sabia desenhar. Só mais tarde, lendo sua biografia, aprendi que até aquela assinatura bacana com que ele autentica os desenhos é criação da equipe.
1949
Comecei a programar viagens fora do país. Primeiro em países da América do Sul, depois Estados Unidos. Deixei a Europa pro fim. Ainda era um acontecimento, viajar.
1950
O sucesso de ’O Cruzeiro’ faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem.
1951
Viajo bastante pelo Brasil, coisa que sempre gostei de fazer, mas de carro, única forma de sentir as tremendas distâncias.
1952
Faço questão que o ministro brasileiro me batize nas águas do Rio Jordão, em Israel. Cada um tem o São João Batista que merece.
1953
Vice-campeão mundial de pesca ao atum na Nova Escócia. Nunca tinha pescado em minha vida e nunca peguei um peixe. Uma longa história que não cabe aqui.
1954
Compramos por Cr$ 2.700 um apartamento no Rio, num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a granfinada soube, correu atrás de mim e o lugar virou ’status’, o metro quadrado mais caro do mundo. Hoje a portaria da minha casa é o centro de prostituição – na sua quase totalidade exercida por travestis – da cidade. E de qualquer maneira a janela do meu apartamento, no quarto andar, é o local ideal para um sociólogo amador.
1955
Cobertura jornalística de campanha eleitoral. Aí conheci um jovem e engraçado político chamado Jânio e um homem esquisitamente ético chamado Milton Campos. Glória das glórias: ganho o primeiro lugar num concurso de desenhos em Buenos Aires, junto com Steinberg.
1956
Festival de Cannes, casamento de Grace Kelly. Este acontecimento até hoje rende mentiras por parte de muitos jornalistas. Guardo as minhas para momentos insípidos de conversação.
1957
Primeira exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna, naquela época uma sala em baixo do Ministério da Educação. Melhor cenógrafo do ano. Por quê?
1958
Um ano ou dois antes, não estou certo, nosso grupo implantava o frescobol em Ipanema. Me lembro que antes apareceu uma besteira chamada ’la pelote basque sans fronton’. Eu me auto-proclamei campeão do frescobol do posto 9. Mantive o título por muito tempo: quando alguém jogava melhor do que eu, eu dizia que ele era do posto 8.
1960
Minha peça ’Um elefante no caos’ estréia depois de uma briga enorme com a censura, transformada num excelente espetáculo pela genial direção de João Bittencourt. Uma das poucas vezes que um diretor melhorou um trabalho meu.
1961
Exposição de desenhos na Petite Galerie. Viagem ao Egito. Voltamos correndo com a renúncia de Jânio.
1963
Uma “questão religiosa” me coloca em conflito com a tradicional ’ética’ dos ’Diários Associados’. Num discurso público, declaro: me sinto como um navio abandonando os ratos.
1964
Preparando o lançamento de ’O PIF-PAF’, quinzenal que, em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais.
1965
“Liberdade, Liberdade”, com Flávio Rangel. Um barato no meio do caos. Depois a censura proíbe. Como proíbe também, na íntegra, “Este mundo é meu”, com Sérgio Ricardo.
1966
Cada vez me meto mais, profissionalmente, no teatro. Traduções, adaptações, originais. Representamos, no Largo do Boticário, a versão musical de “Memórias de um Sargento de Milícias”, só com atores negros.
1967
Topo fazer o ator ao lado de Elizeth Cardoso e o Zimbo Trio. Uma experiência inesquecível, que outras ocupações não me deixaram repetir.
1968
O período efervescente do Pasquim. Parecia até que o país existia e que certa socialização, confundida com uma fugida fraternidade, era possível.
1970
Sempre viajando pelo Brasil.
1971
A “parada” com o sistema engrossa. Quase não publicamos nada inteligível e o teatro fica praticamente impossível.
1972
Volto a me interessar por livros. Lanço ao mesmo tempo “A Verdadeira História do Paraíso” e “Trinta anos de mim mesmo”, um resumo de anos de trabalho, numa noite de autógrafos denominada “Noite da Contra-incultura”.
1973
Promovido a cidadão mineiro, afinal, pela Câmara de Conceição-de-Mato-Dentro.
1975
Exposição na Graffiti. Fim da censura no ’Pasquim’.
1976
Escrevo “É…”.
1977
Na foto eu tenho a rara oportunidade de dar alguns esclarecimentos políticos a Mário Lago.
1978
Um trabalho muito mais difícil do que podia parecer: a adaptação de “Deus lhe Pague”.
1979
Aos poucos, venho descobrindo mais o Rio Grande do Sul, onde só tinha estado há muito tempo. Vou me agauchando.
1986
Compro o primeiro computador, um XT a vapor, mesmo assim considerado por muitos uma extraordinária peça de ficção científica.
1988
Comemoração de 50 anos de jornalismo. 25 de março, na casa de Técio Lins e Silva e Regina Pimentel.
1996
Com Monique Duvernoy, Fernando Pedreira e Cora Ronai, em Auvers-sur-oise.
1997
Com Cora Ronai e Ocimar Versolato, jantando na casa de Monique Duvernoy e Fernando Pedreira.
2000
Lançamento do saite “Millôr Online”, com festa no Copacabana Palace, Rio.


FRASES


"Chato... indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele."

"De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência."

"Os nosso amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar".

"Fiquem tranquilo os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira para matar".

"Deus existe, mas é ateu."

" Ser gênio não é difícil. Difícil é encontrar quem reconheca isso."

"Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica melhor."

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

"Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder."

"O crime não compensa. Mas de que é que vivem os juízes do Supremo Tribunal?"

"Antigamente os animais falavam. Hoje escrevem,"

"Não há pessoa mais chata do que você mesmo. Fuja da solidão."

"Um dia, mais dia menos dia, acaba o dia-a-dia."

"Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois."

"Depois de morrer, meus descendentes poderão dizer com orgulho: 'ele não fez nada que merecesse a Ordem do Mérito".

"É meu conforto: da vida só me tiram morto".


CHARGES



POEMAS 

POEMEU DO IDEALISTA REALIZADO

Há os que têm desejo
E não têm mulher
Há os que têm mulher
E não têm desejo
Eu tenho mulher
E desejo
E, o que é melhor,
Tenho a mulher que desejo.


POEMEU EFEMÉRICO

Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril

POEMINHA SEM OBJETIVO I

Me elogia, vai!
Escreve um troço, aí!
Não dói não; faz de conta
Que eu morri.


POEMINHA DA ÚLTIMA VONTADE

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr

 
FONTE: Site Oficial do Millôr


P.S.: Só pra constar
Na VEJA de 10/06/2009, Millôr fez um elogio rasgado ao Manual do Canalha do nosso escriba, Boca do Inferno, Simão Pessoa. Para alegria de uns e inveja de outros. Acesse o link abaixo
 http://simaopessoa.blogspot.com.br/search?updated-max=2012-03-18T14:34:00-04:00&max-results=20&start=17&by-date=false

quarta-feira, 21 de março de 2012

Candiru

Contagem regressiva

cidade. Isso significa dizer que os nossos homens públicos também já podem colocar as barbas de molho porque à meia-noite do dia 31 de março, a jiripoca vai piar, quer dizer, o Candiru vai boiar no seu computador. Nosso timaço de advogados, comandado pelo Ary de Castro Filho, também já está de prontidão. Como a chapa vai ferver, todo cuidado é pouco!

Fonte: http://www.blogdafloresta.com.br/boca-do-inferno.html

Livro no Alienista

Clique sobre a imagem, para ampliá-la.
Esta obra está evidenciando o papel dos fungos em biotecnologia, em processos industriais, na pesquisa básica e medicina. Constam atividades teóricas e práticas comprovadas e/ou modificadas no decorrer do desenvolvimento de Projetos de Pesquisa, Iniciação Científica, Dissertação e Tese, assim como atividades práticas de acadêmicos de Graduação e Pos-Graduação. Deu-se ênfase aos temas voltados aos processos upstream envolvendo microorganismos para aplicação industrial.

No sábado passado (17/03), dei uma conferida no lançamento do livro Fungos da Amazônia: uma riquesa inexplorada, que aconteceu com um delicioso coquetel no IGHA. Você pode adquirir o livro aqui no Blog (via Estante Virtual), na Banca do Alienista na Praça da Polícia ou aos domingos na Feira da Eduardo Ribeiro.

Foto: Tanair Maria
Nesta foto, eu "de gaiato", ao lado dos organizadores do livro: Taciana de Amorim Silva, Prof. Maria Francisca Simas Teixeira, Rosana Antunes Palheta e Hérlon Mota Atayde. A também organizadora Ana Lúcia Basílio Carneiro não compareceu por motivo de viagem.

sexta-feira, 16 de março de 2012

As 22 Lâminas - 2ª Temporada


CASARÃO DE IDEIAS
RUA MONSENHOR COUTINHO-CENTRO
(Em frente ao Laboratório Costa Curta, esquina com a Epaminonas)
Sábados de Março e Abril de 2012
Ingresso: R$ 10,00
Classificação: 18 anos
Hora: 19:30 h

quarta-feira, 14 de março de 2012

14 de março - Dia Nacional da Poesia e do Vendedor de Livros


Paulo Leminsk

parem
eu confesso
sou poeta


cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face


parem
eu confesso
sou poeta


só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta




Carlos Drummond de Andrade

Política Literária
A Manuel Bandeira 

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.


Enquanto isso o poeta federal,
tira ouro do nariz. 




Simão Pessoa

Depois de comer aranha
minha cobra repousa murcha
numa infinita tristeza

Deito a amada de bruços
e minha cobra se levanta
para comer a sobremesa

             AKAI
          (1814-1862) 

Manuel Bandeira 

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas


Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis


Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. 


Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. 


Marco Gomes 

poesia
tem que ter
cheiro de sangue
esperma e merda.
expressão de vida
nunca de sonhos.
poeta de quimera
tá morto, enterra.



Cecília Meireles

Motivo 


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
- ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



Zemaria Pinto


exercício nº 13 (Also Sprach Zarathustra)


Agora vou dizer-vos sobre mim.
ó multidão destino e oceano.
Estai atenta para que as palavras
fundam-se em fogo e bronze na memória.

Dos homens ocos já trilhei caminhos,
plantei sementes de noturnos sonhos,
fiz-me passagem, ponte, travessia:
hoje sou ontem e amanhã e sempre.

Fui peregrino, traduzi montanhas,
levando em mim o caos que poderia
trazer à luz a mais brilhante estrela.

amei senão a alma transbordante
e a solidão dos poucos que souberam
viver a vida como se extinguindo. 



Marcileudo Barros

Estradas

Feito estradas de sonhos,
todos lindos.
Cobrem os raios do dia findo,
todo o chão.
Eu me ponho nessa estrada,
ar de domingo
a plantar e recolher
sonhos com a mão.

Feito fogos de artifício
coloridos.
Cobrem os raios do dia findo,
todo o chão
E eu me ponho nessa estrada,
entretido
a colher e espalhar brilhos com a mão.

Essa estrada é um sonho
e esse sonho
se acaba a cada novo despertar
Só as crianças e os poetas
nela vivem
Não dependem de dormir
para sonhar.


Hilda Hilst


ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO.


(...)
                   X
Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.



Celestino Neto

Bandeiras

Diz o ateu:
- Meu deus, quem diria?
anarquista funcionário público,
poeta marginal na Academia.

clique sobre a imagem, para ampliá-la.


clique sobre a imagem, para ampliá-la.

quinta-feira, 8 de março de 2012

8 de Março

Alice Ruiz

socorro

socorro, eu não estou sentindo nada.
nem medo, nem calor, nem fogo,
não vai dar mais pra chorar
nem pra rir.

socorro, alguma alma, mesmo que penada,
me empreste suas penas.
já não sinto amor nem dor,
já não sinto nada.

socorro, alguém me dê um coração,
que esse já não bate nem apanha.
por favor, uma emoção pequena,
qualquer coisa que se sinta,
tem tantos sentimentos,
deve ter algum que sirva.

socorro, alguma rua que me dê sentido,
em qualquer cruzamento,
acostamento, encruzilhada,
socorro, eu já não sinto nada.




Astrid Cabral


Estrangeira

Varro os degraus das escadas
deste paço imperial 
circundado de colunas. 
Mas é no abstrato barro 
de outro hemisfério 
junto a raízes bem fundas 
que estão plantados meus pés.






Clarice Lispector


Dá-me a tua mão  

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.


Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio. 


  


Cora Coralina

Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…


Vive dentro de mim
a lavadeira do rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.


Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.


Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.


Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,

meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.


Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.


Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras!




Marina Tsvetáieva

Não terás minha alma viva
tradução de Aurora Bernardini

Não terás minha alma viva,
Não se dará como uma pluma.
Vida, tu rimas muito com: fingida –
O ouvido do cantor não erra uma!

Não a inventou um nativo,

Deixe que vá a outras paragens!
Vida, tu rimas muito com: ungida –
Vida: brida! Destino: desatino!

Cruéis são os anéis nos tornozelos

No osso penetra a ferrugem!
Vida: facas sobre as quais dança
Quem ama.
– Cansei de esperar a faca!



 
Orides Fontela
 Fala

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)